Na última quinta-feira o presidente Jair Bolsonaro voltou a abordar um tema de interesse dos entusiastas em sua live semanal. Desta vez, ele declarou que pretende cancelar as placas do Mercosul. Bolsonaro já havia se manifestado contrariamente às placas antes da campanha presidencial e também no Congresso, ainda como deputado federal.“Vamos ver se a gente consegue anular a placa do Mercosul. É um constrangimento, uma despesa a mais”, disse no vídeo.
Nos últimos meses o FlatOut veio acompanhando de perto o desenrolar da implementação das placas. Trouxemos aqui um resumo da audiência pública realizada no início de dezembro e antecipamos que elas seriam adiadas até junho e correm o risco real de ser extintas — não apenas por conta da eleição de Bolsonaro, mas também por uma série de questões técnicas e burocráticas.
Como Bolsonaro é contrário às placas também por uma questão ideológica — para ele as placas são bolivarianas, pois foram idealizadas no período em que os países membros do Mercosul eram governados por presidentes de esquerda, alinhados ideologicamente — acho que pode ser uma boa hora para, deixando qualquer ideologia política de lado, explicar porque elas não são realmente necessárias.
Sim, eu sei que as sequências originais do atual sistema estão acabando, e também sei que precisamos de um sistema que impeça a clonagem e ajude a coibir o furto de automóveis. E é justamente por isso que a placa do Mercosul não é necessária e deverá cair.
A intenção original era unificar não apenas as placas, mas o sistema de registro de veículos. Em vez de um Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) teríamos um “Registro de Veículos do Mercosul”, que integra o nosso Renavam ao seu sistema análogo da Argentina, Paraguai e Uruguai. Acontece que o Uruguai e a Argentina já adotaram as placas, o Brasil estourou o prazo duas vezes, mas o sistema unificado ainda não existe — e sequer foi definido que país será responsável por desenvolvê-lo.
Além disso, é sabido que há um grande receio do Brasil em abrir os dados do Renavam para o governo do Paraguai — que é o maior receptor dos carros roubados no Brasil. Esse é o primeiro ponto. Sobre a unificação do sistema, ainda há uma outra questão que me ocorreu agora: o Uruguai adotou o sistema ABC-1234 e o Brasil irá manter esse mesmo sistema até o fim do prazo para substituição compulsória das placas. Com um sistema unificado, como diferenciar a placa ABC-1234 uruguaia da placa ABC-1234 brasileira?
Outro ponto é a questão da fiscalização. As placas do Mercosul foram idealizadas com um chip transponder, que impede a clonagem de placas (uma vez que o código-chave do transponder é gerado uma única vez e atribuído apenas àquela placa) mas também serve para rastrear um carro roubado. E aqui temos dois problemas: o primeiro é que o chip que permite o rastreamento é inconstitucional. Nossa constituição não garante ao Estado o direito de rastrear os cidadãos por razões óbvias. O segundo, é que o sistema para instalação e leitura dos chips também não existe. Nenhuma das placas do Mercosul que você já viu nas ruas e nas fotos tem esse chip. Elas também não têm lacre, o que facilita seu roubo e instalação em um carro roubado.
Sem isso — sistema unificado e chip — as placas do Mercosul se tornam mais inseguras que as atuais, o que por si seria suficiente para abandoná-las.
Há a questão da clonagem e da escassez de sequências alfanuméricas, mas não precisamos realmente de uma placa do Mercosul para resolver estes problemas. Em São Paulo, na Bahia e em alguns outros estados brasileiros, a produção da placa já foi separada da estampagem como proposto para a placa do Mercosul. As novas placas serão assim: uma empresa produz a placa com todos os elementos exceto a sequência alfanumérica.
Elas terão QR codes que o Detran atribui àquele fabricante. Na hora de emplacar o carro, o estampador faz a leitura do QR code, que é enviado ao Detran, validado, e vinculado a uma sequência alfanumérica que foi atribuída pelo Detran àquele fabricante. Assim o Detran pode controlar quem fabricou e quem estampou a placa. Esse sistema já é usado pelo Detran de São Paulo, Bahia, Goiás, Tocantins, Espírito Santo, Distrito Federal entre outros estados. Bastaria portanto, que o Denatran o tornasse um padrão nacional para todos os Detrans.
Quanto ao fim das sequências alfanuméricas, teríamos duas opções: a primeira é reutilizar placas de veículos baixados depois de um certo período — 20 anos, por exemplo. A outra, é simplesmente flexibilizar a formação da sequência. Em vez de termos obrigatoriamente três letras e quatro números (ABC-1234), porque não adotamos o formato do Mercosul (ABC 1D34) no padrão atual? Mantemos as placas como estão e passamos a gerar as novas com as letras misturadas aos números, o que permitiria um número ainda maior de placas.
Veja só: o atual sistema permite cerca de 195.000.000 de placas, enquanto o formato do Mercosul permite cerca de 530.000.000. Mas como teremos uma conversão do sistema atual para o do Mercosul, temos que subtrair 195.000.000 de combinações das 530.000.000 — o que resulta em cerca de 335.000.000 de combinações novas. Se mantivéssemos o formato atual junto do formato do Mercosul, somaríamos as combinações, chegando a 725.000.000 de combinações. E ainda poderíamos manter apenas o último caractere numérico (por causa do rodízio paulistano), liberando letras e números em qualquer posição. Nesse cenário teríamos, portanto, quase 25 bilhões de combinações.
Ah, ia quase me esquecendo das multas a motoristas de outros países — os argentinos que abusam nas estradas de Santa Catarina, ou os brasileiros que não resistem às retas do planalto argentino poderiam ser punidos por suas infrações. Bem, também não precisamos de um sistema de placas para isso. Acordos diplomáticos resolveriam este problema facilmente.
Sem as placas do Mercosul, a única coisa que perderemos de verdade é o layout a la União Europeia. É disso mesmo que precisamos agora?
Fonte: flatout